quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A FILOSOFIA DA LINGUAGEM EM WALTER BENJAMIN: FRANZ KAFKA E A OUTRA POSSIBILIDADE DA LINGUAGEM

São diversas as razões pelas quais a filosofia da linguagem de Walter Benjamin não tem um estatuto científico, a sua posição em face à linguagem terá sido, sobretudo, uma tática a mais que o filósofo recorreu para tentar definir sua tarefa de pensador. Benjamin tinha um espírito livre, buscava o conhecimento pela experiência, ou melhor, pela experimentação. Nunca formalizou a sua participação no Instituto de Pesquisas Sociais, a chamada Escola de Frankfurt, sendo conhecido como um “companheiro de viagem”. Preferiu a Europa fascista aos Estados Unidos da América ou até mesmo Israel, onde residia o amigo Gershom Scholem. Era um homem que buscava o seu próprio ser, a sua própria essência.

Aqui nos ateremos, sobretudo, ao texto Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana de 1916, que expressa uma parte importante e constituinte do seu pensamento sobre a linguagem. E o ensaio “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte” (1934), que referiremos num segundo momento de nosso trabalho, para explicitar alguns pontos da linguagem e da modernidade. A filosofia da linguagem benjaminiana fundará as bases para, posteriormente, ser desenvolvida a sua teoria da arte e a sua filosofia da história.

No texto Sobre a linguagem, Benjamin parte da idéia de que a própria linguagem não é uma particularidade do homem. Tudo, na Criação, é linguagem, e a linguagem do homem mais não é que uma forma privilegiada da linguagem em geral. Numa época em que Wittgenstein e outros elaboram uma lingüística científica, Benjamin parece voltar a uma concepção pré-moderna, metafísica e mística do Livro do Mundo, em que tudo fala, em que tudo se comunica. Mas o que a linguagem comunica? Segundo Benjamin ela comunica-se por si mesma, e comunica a essência espiritual correspondente na linguagem, não pela linguagem. Ou seja, antes de se tornar, ilusoriamente, instrumento de comunicação de um conteúdo particular[1]. Tratar-se-á, em última análise, de afastar a linguagem de toda a concepção instrumentalista[2].

Benjamin afirma que toda a linguagem humana comunica a essência espiritual que lhe corresponde. Nota-se, contudo, que tal essência espiritual comunica-se na linguagem e não pela linguagem. Ressalta-se com veemência que toda a linguagem se comunica a si mesma, isto antes de poder ser, ainda que ilusoriamente, instrumento de comunicação de um conteúdo particular. É então que surge a concepção da linguagem como magia, a propósito de toda a comunicação espiritual - que se produz na linguagem e não pela linguagem. A “magia da linguagem” está em que ela comunica em si mesma, e de forma absoluta[3]. Benjamin distingue-a de uma falsa magia inerente ao uso instrumental da linguagem, uso que será alvo de uma tentativa de libertação. Assim, como a linguagem das coisas e dos acontecimentos, também a linguagem humana exprime e comunica antes de toda a comunicação instrumental. Daí o propósito central que norteava Benjamin: libertar toda a linguagem do caráter instrumentalista. Em tal processo, distinguem-se duas linguagens: a linguagem das coisas e a linguagem dos nomes.

A linguagem das coisas é a própria essência lingüística das coisas e que se comunica ao homem. Porém, no caso da linguagem do homem, sabemos que ele fala por palavras onde comunica a sua própria essência espiritual - e isto denominando todas as outras coisas. E é assim que Benjamin lança a questão: comunica-se a quem tal linguagem? O autor assinala a diferença então ao nível do destinatário destes dois tipos de linguagem. Por um lado, as coisas e os seres da natureza comunicam-se ao homem. Mas, por outro lado, quando o homem nomeia, no nome, a essência espiritual do homem transmite-se a Deus. Liberta assim a linguagem humana de uma concepção instrumental, a que ele chama de “concepção burguesa da linguagem”. Deus é a testemunha dessa faculdade humana de nomear, pela qual a humanidade exprime a sua essência espiritual. Benjamin rompe, deste modo, com qualquer teoria da linguagem que associe a palavra humana a funções meramente pragmáticas, uma característica da concepção burguesa da linguagem.

Esta faculdade de nomear faz do homem uma instância privilegiada da Criação divina – é que a Criação completa-se justamente através do ato de nomeação do homem. E é assim que se estabelece uma graduação de todos os seres espirituais, segundo “graus de existência” ou “segundo graus de ser”, como já sucedia na escolástica, em função do conceito filosófico-religioso de revelação. A idéia de Benjamin é a de que o domínio espiritual mais elevado da religião é simultaneamente o único que o inexprimível não conhece. Porque é interpelado no nome e se manifesta como revelação. Imagina-se, então, uma ordem genealógica da linguagem, a partir de um evento eruptivo.

No entanto, Benjamin sustenta em seu ensaio Sobre a linguagem, que só em Deus existe a relação absoluta do nome com o reconhecimento, só aí o nome é idêntico à palavra criadora. Considera, portanto, ter havido na comunicação entre os homens a perda da linguagem originária – a linguagem dos nomes, que nada sabe da exterioridade e na qual o nome e a coisa coincidem de maneira quase absoluta. É que, como afirma, a linguagem só se exprime de um modo puro quando fala no nome, a verdadeira e última invocação da linguagem. No nome, acumula-se “a totalidade intensa da linguagem”. Mas fora dele, no uso, fica a indeterminação, dado que nunca se trata nem da verdadeira nem da última invocação da linguagem.

A partir do momento preciso da perda da linguagem originária e da multiplicação de linguagens, toda a linguagem humana é apenas reflexo da palavra no nome. Assim, a linguagem surge com possibilidades limitadas. Isto quando comparada com a palavra Criadora, a palavra de Deus. E então o reflexo mais profundo a que podemos aceder é o nome humano – só aí atingimos uma modesta participação íntima na palavra divina, na sua infinitude. No entanto, ressalta que nesse mesmo ponto que é o nome a palavra não pode tornar-se palavra finita nem conhecimento. Ou seja, não pode ser alvo de uma única e última interpretação, de uma análise definitiva. Não é sempre ou necessariamente o mesmo aquilo a que a linguagem se refere. E deste modo, é linguagem dispersada e transformada num “mero sistema de signos arbitrários”.

Com o uso da linguagem, surge perante nós, marcada pela convenção, cada denominação que pode assim nomear uma ou outra coisa. Enfatizando como é evidente e determinante a brecha que se abriu aqui entre a coisa e o nome: dá-se a perda da linguagem dos nomes, o que ocorre no momento preciso em que o uso chega. Esta idéia da linguagem dos nomes parece conformar-se à idéia tradicional de obra de arte, que Benjamin tão bem reflete, principalmente no seu ensaio sobre a “Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936/1937).

Na tradição, a obra de arte é apresentada como com uma existência autêntica, única, com o hic et nunc de um evento irredutível e insubstituível: como a aparição daquilo que permanece protegido da reprodutibilidade geral. A obra de arte tradicional gera um efeito de sacralização, produzido pela aura, que remete de volta a uma função ritual; em certa medida, ela é um nome. Como mostra Benjamin neste ensaio sobre a “Obra de arte”, é a reprodução técnica que destrói a autenticidade da obra de arte tradicional. Isto é também visível no processo que submete a linguagem ao princípio da reprodução, e nomeadamente da reprodução técnica. Mas a forma que a linguagem assume na era da reprodutibilidade técnica é precisamente esta: falar e escrever em clichês. Quando “cunhamos ditos” usamos em cada vez expressões tão gastas que acabam por assegurar que a linguagem criada pela imprensa, que é tida como a instituição da reprodutibilidade técnica, é uma linguagem de citações sem referências. A citação aparece assim como um vestígio da comunicabilidade no interior da própria comunicação.

Sob uma nova perspectiva da linguagem em Walter Benjamin, pode-se ressaltar a importância da leitura que este fez de Franz Kafka. Tal leitura desenvolve-se entre 1934 e 1938, as cartas entre Benjamin e seu amigo Gershom Scholem demonstram como essa troca de idéias foi relevante, principalmente para a consolidação de parte das “Teses sobre o conceito de história” (1940), versando principalmente a filosofia messiânica da história. Sabe-se que Benjamin leu em 1927, O Processo, de Kafka. A interpretação que então fez divergiu da que lhe era proposta por Scholem.

Pode-se considerar que Benjamin tenha tido duas etapas nas leituras que fez de Kafka. Na primeira leitura verificou como a transição da tradição para a modernidade se manifesta do ponto de vista da modernidade, como uma possibilidade que se abre. Na segunda etapa, refletiu o ponto de vista da tradição. O ensaio que escreveu sobre Kafka, “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte” (1934), têm uma linha de argumentação bastante clara. O ponto de partida é um exame da natureza do mundo de Kafka, centrado no lugar que nele ocupa a lei: “é certo que na obra de Kafka o direito escrito existe nos códigos, mas eles são secretos, e através deles a pré-história exerce seu domínio ainda mais ilimitadamente”[4]. O caráter secreto da origem da lei torna a situação do acusado desesperada. E é esse desespero que “revela a beleza” do acusado. É que Kafka torna belo o desespero daqueles que sofrem uma lei desconhecida, através da descrição da sua situação sem solução aparente, sejam quais forem as suas esperanças individuais. Este desespero distancia a obra de Kafka da restauração do mito:
“Kafka não cedeu à sedução do mito. Novo Odisseus, livrou-se dessa sedução graças ao ‘olhar dirigido a um horizonte distante’[...]. Pois Odisseus está na fronteira do mito e do conto de fadas. A razão e a astúcia introduziram estratagemas no mito; por isso, os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses poderes. Kafka escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs narrar sagas”[5]

A dialética da interpretação benjaminiana de Kafka oscila, pois, nesta dupla referência: por um lado, um mundo anterior ao mito; por outro, um mundo que o superou, justamente pela existência da lei. Ao fazer parte de um mundo em que a realidade da lei é legitimada no tocante à sua forma escrita, Kafka não pode deixar de apresentar a opacidade dessa lei para o indivíduo, em termos de alguma origem escrita. Trata-se assim de um mundo pré-histórico e pós-mítico, pela sua apresentação da forma racional da lei. A principal conseqüência dessa ambivalência é a indeterminação interpretativa, e será esta indeterminação que constituirá o significado da obra de Kafka.

O mundo de Kafka é determinado só na sua indeterminação. Como afirma Benjamin: “toda a obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio autor; eles só recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos”[6]. Isto do mesmo modo que os seus personagens usam para, em vão, extrair um significado conclusivo das circunstâncias em que se inserem. As histórias de Kafka pedem para serem lidas como parábolas e, ao mesmo tempo, recusam-no.
“Não são parábolas e não podem ser lidas no sentido literal. São construídas de tal modo que podemos citá-las e narrá-las com fins didáticos. Porém conhecemos a doutrina contida nas parábolas de Kafka e que é ensinada nos gestos e atitudes de K. e dos animais kafkianos? Essa doutrina não existe; podemos dizer no máximo que um ou outro trecho alude a ela. Kafka talvez dissesse: esses trechos constituem os resíduos dessa doutrina e a transmitem. Mas podemos dizer igualmente: eles são os precursores dessa doutrina, e a preparam. De qualquer maneira, trata-se da questão da organização da vida e do trabalho na comunidade humana”[7].

De qualquer modo, “no espelho da culpa, que o mundo primitivo lhe apresentou, ele viu apenas o futuro, sob a forma do tribunal”[8]. Mas, acrescentou Benjamin: Kafka “não contou como ele era”. Evidencia-se neste ensaio que Kafka compreendeu as coisas somente na forma de um gestus, mas que não foi capaz de compreender esse gestus em si. E, deste modo, em Kafka a narrativa retoma a significação que tinha na boca de Scherazade, nas Mil e Uma Noites: “adiar o que está por vir”[9].

Como já dissemos acima, havia sido Scholem que motivou Benjamin para a leitura de Kafka. É, então, que ele encontra uma afinidade com a linguagem do juízo final, o prosaico na sua forma mais canônica. Fazendo jus à originalidade do seu pensamento, para Benjamin o aspecto de maior saliência nas leituras de Kafka é a ignorância que perpassa por todo o seu mundo, e que vai tomar a forma de esquecimento.

A propósito disto, Benjamin cita Willy Haas, sobre O Processo: “o verdadeiro herói desse livro inacreditável, é o esquecimento”. E continua: “cujo principal atributo é o de esquecer-se a si mesmo... Ele se transformou em personagem mudo na figura do acusado, figura da mais grandiosa intensidade”[10]. Onde Scholem vê julgamento, Benjamin vê memória, uma memória de que o personagem K. está para sempre alienado: “quando outros personagens têm algo que dizer a K., eles o dizem casualmente, como se ele no fundo já soubesse do que se tratava”[11]. Podemos notar nessa passagem que é como se nada de novo estivesse a ser comunicado, e ele fosse apenas convidado a relembrar.

Benjamin asseverou como a obra de Kafka indica um estado do mundo em que tais perguntas não têm mais lugar porque as suas respostas, longe de serem instrutivas, tornam as perguntas supérfluas. A experiência do presente, e com certeza a modernidade também, em termos da sua forma, nova e radicalmente abstrata formula por si mesma perguntas suficientes. É a questão do homem dilacerado, o homem moderno tentando recolher as suas migalhas e partes. Nesse sentido, pode-se observar como os escritos de Kafka proporcionaram a Benjamin elementos de análise do pólo da tradição – mas de uma tradição em luta com a modernidade, e dessa mesma tradição em crise. Também a modernidade em Kafka é assim vista sob o signo da tradição e da cabala, como forma de interpretação e de conhecimento.

Segundo a teoria da linguagem de Benjamin, o que a linguagem tem de comum com a sua comunicabilidade é uma ínfima e inumerável sombra de verdade. Verdade essa que está acima de qualquer linguagem em particular. A importante tentativa de comunicar a experiência da modernidade numa linguagem da tradição e o seu fracasso, afirma Benjamin, tornam a obra de Kafka exemplar para ilustrar o seu pensamento. Porém, o que é central na obra de Kafka para esta questão é a indeterminação interpretativa, que constitui o significado da obra kafkaniana. Como em Benjamin, a verdade, também, está nos livros, numa escrita primeira afastada na distância, a que não temos acesso. É que o seu caráter secreto não nos permite ter as coisas pela linguagem de forma definitiva, alguma vez acabada. Há aqui, como em Benjamin, o desespero paradoxalmente fascinante de não nos podermos adaptar à convenção; o tal prazer em que se “articulam sentidos e espíritos”, na interpretação, na crítica e na análise.












Referencias Bibliográficas:

BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet; prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. SP: Brasiliense, 1996. (Obras escolhidas; v. I)

_________________. Rua de mão única. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. SP: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas; v. II)

_________________. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad.: Márcio Seligmann-Silva. 3ª ed. SP: Iluminuras, 2002. (Biblioteca Pólem)

________________. Origem do drama barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

______________; SCHOLEM, G. Correspondência. Trad.: Neusa Soliz. SP: Editora Perspectiva, 1993. (Coleção Debates, Filosofia)

BENJAMIN, A.; OSBORNE, P. (orgs.). A filosofia de Walter Benjamin: Destruição e experiência. Trad.: Maria Luiza X. de A. Borges. RJ: Jorge Zahar, 1997.

____________. O Castelo. Trad.: Modesto Carone. SP: Companhia das Letras, 2000.

ROCHLITZ, R. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. Trad.: Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, SP: EDUSC, 2003.

[1] Cf. Rochlitz. O desencantamento da arte. p. 24.
[2] Hans-Georg Gadamer em Verdade e Método, desenvolve uma “uma hermenêutica também oposta às concepções instrumentalistas da linguagem. Segundo ele, a linguagem é o ‘meio universal no qual a compreensão ocorre’ e não é, portanto, como em Benjamin, uma concepção mística conferindo ao homem um papel messiânico na Criação, mas uma teoria profana do primado da tradição inerente à linguagem sobre a razão e o conhecimento”. Idem, p. 34 e 35.
[3] Cf. Idem, p. 24.
[4] Benjamin, Obras escolhidas, v. 1, p. 140.
[5] Idem, p. 143.
[6] Idem, p. 146.
[7] Idem, p. 148.
[8] Idem, p. 154.
[9] Idem, ibid.
[10] Idem, p. 156.
[11] Idem, ibid.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Engenho das Idéias

Em breve abrirá em Bauru um novo espaço para as idéias florecerem!!!
Uma nova proposta em ensino de Filosofia, Artes, Crítica, Sociologia, Atualidades e escrita textual...



Espero a visita de todos...