quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Outro olhar histórico: tese número 7 e a poesia brechtiniana

A proposta de um novo olhar histórico apresenta-se não somente nas “Teses sobre o conceito de história” (1940), como também em Alguns temas em Baudelaire (1936-1939), no ensaio “O narrador” (1936), na introdução da Origem do drama barroco Alemão e no livro das Passagens (Teoria do Conhecimento). Contudo é importante ressaltar que o pensamento constelado benjaminiano traz consigo elementos do romantismo alemão, do messianismo judaico e do marxismo, para então, formular uma interpretação original da História. Nessa interpretação está incutida a crítica ao progresso, ao positivismo que demarca os conceitos de história. Tal iluminação perpassa os escritos de Benjamin desde 1914 até 1940, ano de sua morte.

A crítica do progresso tem origem romântica, contudo ganha significado messiânico revolucionário. O conceito de progresso tem uma função crítica na sua origem, mas no século XIX, com a ascensão do poder da burguesia essa função vai desaparecendo gradativamente. A historiografia do século XIX torna-se, então, cúmplice da barbárie de toda a cultura. É sob esta perspectiva que se tem a necessidade de submeter o conceito de progresso a uma crítica imanente pelo materialismo histórico. A articulação com o materialismo histórico acontece por volta de 1924, para contestar as doutrinas do progresso ilimitado e contínuo da social-democracia e do comunismo stalinista.

A crítica veemente de Benjamin contra o progresso da própria humanidade vai em direção ás descobertas técnicas, ao desenvolvimento das forças produtivas e à dominação da natureza. Pois a utilização bélica das novas técnicas (aperfeiçoamento técnico dos meios de guerra) e máquinas só intensifica a exploração do próprio indivíduo. Sob essa perspectiva que a revolução é louvável, pois somente pela revolução que se atingiria a interrupção messiânica do curso da história. Nas “Teses” a crítica é mais radical e profunda a respeito das ideologias do progresso, Benjamin está tratando do declínio da experiência (Erfahrung) do mundo moderno, que se inicia com o advento da manufatura e a produção de mercadorias. Experiência no sentido de declínio da Erfahrung coletiva e a ruptura do encantamento libertador, ou seja, há uma destruição, por meio da técnica, da relação homem e natureza que deve ser reconciliada. As experiências passadas e as experiências presentes como uma revisão do passado pelo presente, ou seja, salvar o que foi esquecido.

O operário, segundo Benjamin, é o autômato impermeável à experiência, são os passantes na multidão, as massas amorfas. O poema de Brecht, Perguntas de um operário que lê, é exemplar nesta discussão: pois “quem construiu Tebas, a das sete portas?”. “A Babilônia, tantas vezes destruída, quem outras tantas a reconstruiu?”. Ou ainda, “a grande Roma está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu?”. É nesse sentido que vai a discussão sobre o progresso e a história. A perspectiva da razão tem que ser enaltecida. Contudo a alegoria do autômato está sobressaindo-se. O caráter mecânico, vazio e repetitivo da vida na sociedade industrial. Os indivíduos têm que se conscientizar do seu passado, através da rememoração (Eingedenken), da redenção ao passado. A rememoração coletiva das sociedades sem classes, vivendo em estado de harmonia edênica com a natureza. Ou seja, o conceito de história benjaminiana, assim como a história para Hegel vai ter um telos, um fim. E este fim chegará quando o homem emancipado reconciliar-se-á com a natureza e com a sua própria Razão, e viverá no antiautoritarismo e antipatriarcalismo. Ou seja, quando o indivíduo atingir a sua completude, que é um processo de uma espera messiânica de redenção que cada geração transmite à seguinte; por isso da importância de uma historia narrada de geração para geração. Contudo o progresso que impedirá a realização dessa redenção. Na alegoria da tempestade (tese 5, 6, 7 e 9), o vento da história representa o vento do Absoluto, que sopra do Paraíso, mas a tempestade que se aproxima é o progresso. O homem deve ir ao encontro do movimento histórico, ou seja, do Absoluto. Ainda cabe afirmar que é sob o signo de um olhar surrealista que devemos buscar o passado prematuramente em ruínas, juntamente com a idéia de progresso, para então chegarmos a natureza da rememoração.

Retomando a poesia “didática” brechtiniana, é somente a revolução proletária que pode e deve operar a interrupção messiânica do curso da história. Será pelas forças de rememoração que os operários recuperarão a experiência perdida, que os orientarão para o futuro messiânico/revolucionário.
“O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?
(...)
Tantas histórias
Quantas perguntas”

A figura do historiador aparece em 1936 no ensaio “O narrador”, ele possui traços do cronista – quer-se resgatar os antigos hábitos de contar, de narrar histórias, de colocar a imaginação e a rememoração em prática. Pois o autor desconfia do historiador racional que explica “exatamente” como aconteceram os fatos do passado, por meio de causalidades, ao invés de apresentá-los como ilustrações significativas. É desta forma, que o historiador das teses herda traços do cronista (tese 3). Por meio dessa argumentação que a ciência da história será suspeita de empatia à sistemática dos vencedores. Pois até hoje a história foi apresentada da perspectiva dos “fortes”, dos lideres e vencedores; se esquecem que para um líder ser forte muitos escravos e trabalhadores tiveram suas vidas aniquiladas, e povos inteiros foram oprimidos. Benjamin quer rememorar e narrar com veracidade esses fatos de opressão para que a revolução seja feita com consciência. A história deve ser entendida do ponto de vista da “classe combatente”, do verdadeiro ponto de vista universal e emancipador da história messiânica. Ou seja, há uma reapropriação de uma parte alienada das forças salvadoras.

A história deve ser entendida pelos povos oprimidos que ergueram os grandes monumentos. Não à história dos vencedores! Deve-se compreender que antes de um grande vencedor, herói ou ditador, há o povo. Desta maneira, o povo que deve ser alvo dos estudos, e não por uma “empatia” (conceito empregado pelo próprio Benjamin) que se deve estudar a história “limitada”. Sabe-se que os vencedores são os herdeiros dos que triunfaram antes, e ao estudarmos estes estaremos fortalecendo os dominadores. Fortalecendo no sentido de que o povo não se reconhecerá. A noção de justiça (tese 12) aparecerá, então, como uma vingança geral das classes oprimidas. Este será o motor da revolução social. O que é uma visão problemática: se todos clamarem em nome da vingança terá uma vingança ad infinitumm – na medida em que todos se acharam injustiçados e buscarem essa justiça. Em contrapartida essa noção de justiça benjaminiana se aplica ao “estado de exceção permanente”, ou seja, a uma política autoritária (leia-se fascismo) que é uma regra na história. Contudo o elemento concreto da libertação é o ato do historiador que salva um passado do esquecimento, para que posteriormente ele possa ser rememorado, esta é uma ação revolucionária. Salvar o passado da opressão e do esquecimento, resgatar à memória.

O poema de Brecht vai em direção aos escritos sobre a história crítica apresentada por Benjamin. Ele é exemplar pelo fato de demonstrar ao operário a sua importância no meio social em que vive, e que estava presente em todo o percurso histórico: sem os trabalhadores os heróis não seriam heróis; sem a opressão não haveria dominação. No entanto, o mais importante é a conscientização de que, na verdade, os trabalhadores que são os verdadeiros heróis, pois estavam ativamente ligados a cada empreitada de seu “senhor”. Fortalecendo, assim, a máxima de que “todo monumento de cultura é também um monumento de barbárie”. Não se testemunha a cultura sem se testemunhar também a barbárie. Theodor Adorno terá uma visão de cultura similar a de Benjamin, apresentadas, principalmente na Dialética do Esclarecimento (1947), Mínima Moralia e “Educação pós-Auschwitz”. Para Adorno a história do ocidente é contada desde o massacre cometido por Ulisses até Auschwitz, numa mesma escala. Logo, a cultura passa a ter um alvo certeiro para o nosso estudo, pois ela está impregnada de barbárie. Até mesmo o seu processo de transmissão está submetido ao aparato da barbárie. E qual é a solução proposta por Walter Benjamin? É a de que o historiador crítico se desvie da cultura bárbara; que compreenda o fio condutor da história no seu interior, que entenda as grandes civilizações, os grandes palácios e reinos, por aqueles que os habitavam. É justamente a tarefa, segundo Benjamin, de “escovar a história a contrapelo”.

Deve-se liquidar o elemento épico quando se estuda a história, como um impulso contra as falsas continuidades da história. A história dos oprimidos é um descontinuum; o problema é gerado quando os historiadores tradicionais nivelam num continuum todo o sofrimento e revolta (como, por exemplo, no caso de Auschwitz, que nominaram o genocídio, quando se usa a linguagem para denominar algo repulsivo isso não se torna mais tão asqueroso, ver “Educação pós-Auschwitz”, Adorno). Não se trata de análise dos massacres e opressões que existiram ao longo da história, é a crítica. A desumanidade não é somente regressiva, ela ultrapassa tudo o que já foi cometido. A proposta de outra história que não seja a dominante, para que não sejamos injustos com os milhares de trabalhadores e escravos anônimos de todos os tempos. Deve-se procurar aquela cultura autêntica e não bárbara que o passado nos transmite. A arte autêntica contém um caráter emancipatório, esses monumentos ditos culturais não: os palácios, os arcos do triunfo, a muralha da China só contém opressão. A arte salva do emudecimento e do esquecimento certas experiências da humanidade, conservam a esperança e a derrota. Assim, os sonhos que não puderam se tornar ação em seu tempo são petrificados. A crítica tem a tarefa de estudar as obras de arte produzidas, e “traduzí-las”, arrancando-as do esquecimento, rememorando-as. Essa é a contribuição do historiador crítico para escrever a “história dos vencidos”.

A acedia que Flaubert conhecia. Essa tristeza que os teólogos medievais apresentavam em seus textos. Já na Origem do drama barroco de Benjamin era analisada como “preguiça do coração” e “tristeza mortal”, será para fugir dela que o autor coloca o seu pensamento a favor da transformação social. Em nome da emancipação, da justiça e da felicidade. Assim, esse processo de conhecer o verdadeiro passado ganha um caráter de ação política integral. O método do pensamento histórico em Benjamin consiste em: memória involuntária; apreensão instantânea de uma imagem furtiva; salvação trazida por um perigo iminente e; classe oprimida constituindo o sujeito da história. O sujeito inserido desta forma na História é um sujeito finalizado que procura transcender-se, contudo, ele herda as revoltas do passado. O objeto histórico e o sujeito que conhece essa história estão ligados pela verdade (que deve sempre comprovar-se), pelo ato de revelar-se um ao outro. A libertação desse passado de opressão só ocorrerá quando houver uma detenção do processo histórico. Essa detenção ou “imagem dialética” é uma imagem do sonho da humanidade libertada. Este é um conceito difícil, pois Benjamin não o desenvolveu – mas pode-se dizer que segue o modelo da análise marxista da mercadoria. Mas em breves linhas, consiste em extrair uma imagem, recolher do passado e libertá-la da fantasmagoria que a condenou ao fracasso do esquecimento. O médium entre essa “imagem dialética” será a linguagem, que pela narração será transmitida pelas gerações. Assim, o presente tem influência tanto com o passado quanto com o futuro, haja vista que as gerações futuras só serão emancipadas se deterem todo o conteúdo em que os seus antepassados viveram. Sem as falsas continuidades que a história positivista nos apresentou. Walter Benjamin viveu a guerra, o nazismo, o exílio. Viu nascer uma república que se fundava em valores humanísticos, universais e democráticos: a República de Weimar. Mas esta sociedade civilizada gerou a maior barbárie do século XX. Nenhuma sociedade está imune a tais regressões do espírito, por isso que as “Teses” surgem como um sopro em meio a essa tempestade que se forma no céu, um sopro de esperança, para que se olhe para trás e recordem dos mortos desta carnificina histórica.


Referências Bibliográficas

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. SP: Brasiliense, 1994. (v.I)

____________. Obras Escolhidas. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 5 ed. SP: Brasiliense, 1995. (v.II)

____________. Obras Escolhidas. Trad.: José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. 3 ed. SP: Brasiliense, 1994. (v. III)

LÖWY, M. Romantismo e Messianismo. Trad.: Myrian Veras Baptista e Magdalena Pizante Baptista. SP: Perspectiva, 1990. (Col. Debates, v. 234)

ROCHLITZ, R. O desencantamento da arte. Trad.: Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, SP: EDUSC, 2003.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá... Gostaria de parabenizar pelo excelente texto sobre Benjamin. obrigado.

Eliézer